terça-feira, 6 de novembro de 2012

Projeto entrega cidades à gestão privada em Honduras e é questionado


A Corte Suprema de Honduras declarou inconstitucionais, em decisão preliminar tomada no último dia 3, as chamadas cidades-modelo, projeto de áreas urbanas privadas que o Congresso do país aprovou em 2011. Como a decisão da Justiça não foi unânime - foram quatro votos contrários e um favorável à iniciativa -, o caso deve voltar a ser discutido nesta semana. O processo sobre as cidades-modelo é resultado de 54 recursos de inconstitucionalidade apresentados à Justiça por hondurenhos, segundo balanço do jornal local "El Heraldo".
mapa_honduras_cidades_modelo_300 (Foto: Editoria de Arte / G1)
As cidades-modelo, ou charter cities, são um projeto de concessão do espaço público com gestão privada, com leis, policiamento, administração e recolhimento de impostos próprios. Incentivada por um grupo de investidores estrangeiro, os territórios facilitariam a entrada de empresas transnacionais no país. O governo de Honduras batizou a ideia de RED, sigla para Região Especial de Desenvolvimento.
Para que as cidades-modelo sejam implementadas, é preciso uma mudança na legislação do país. É justamente esta mudança que está em discussão na Corte. A decisão preliminar da Justiça foi anunciada um mês depois da divulgação de uma carta de interesse, assinada em 4 de setembro, entre o governo de Honduras e o grupo de investidores MGK, que quer levantar US$ 15 milhões iniciais para o empreendimento.
Histórico
O projeto prevê a criação de três cidades-modelo, com extensão ainda indefinida, localizadas perto do porto de Trujillo, no vale San Pedro Sula e na costa da região sul do país. As três áreas sofrem com a pobreza. San Pedro Sula, por exemplo, tem a maior taxa de homicídios do mundo: 159  ao ano para cada 100 mil habitantes, segundo a ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz.
Hondurenhos críticos à ideia reagiram ao modelo, ainda em 2011, argumentando que colocar o plano em prática é admitir a falência da gestão pública em um dos países mais pobres da América Latina. O ex-promotor Oscar Cruz chamou as cidades privadas de uma "paródia de Estado".
O projeto é baseado em um conceito do economista americano contemporâneo Paul Romer, que estava ligado ao projeto em Honduras e fazia parte da Comissão de Transparência. Romer disse ao jornal local "El Heraldo", em 23 de setembro, que a assinatura da carta com o grupo MGK foi feita sem seu conhecimento e que o governo local o excluiu da comissão. O economista deixou o projeto dias depois, dizendo que vai buscar o empreendimento em outros países, de acordo com a publicação.

O Observatório dos Direitos Humanos denunciou que o advogado hondurenho Antonio Trejo Cabrera, que se opôs publicamente às REDs, foi morto a tiros ao sair de um casamento, no dia 22 de setembro. A causa do assassinato não foi esclarecida.
Michael Strong, CEO do grupo de investimentos MGK (Foto: Arquivo Pessoal)Michael Strong é CEO do grupo de investimentos
MGK, criado para o projeto (Foto: Arquivo Pessoal)
Modelo da MGK
Em entrevista ao G1, Michael Strong, CEO do grupo MGK, diz que o modelo de REDs proposto vai garantir padrão de vida melhor e mais segurança aos inquilinos dessas zonas.
Nós teremos um perímetro de segurança em volta da zona, mas famílias da classe trabalhadora vão poder comprar casas dentro dela"
Michael Strong, CEO do grupo MGK
O grupo MGK foi criado especificamente para a iniciativa em Honduras. O investimento inicial esperado é de US$ 15 milhões (R$ 30,6 milhões) e a expectativa é que 13 mil postos de trabalho sejam criados em 2013.
De acordo com Strong, a primeira gestão das cidades-modelo será feita por um hondurenho escolhido pelo presidente do país. Depois disso, os administradores serão apontados por uma Comissão de Transparência. Cabe a essa junta determinar quando eleições democráticas são "apropriadas", diz o CEO.
"Vamos começar com um pequeno piloto, de 2,6 km quadrados, e gradualmente aumentar para uma cidade", afirma Michael Strong.
Segundo ele, todos os hondurenhos serão bem-vindos às zonas criadas. O grupo MGK diz que fará parcerias com empresas que fornecem moradias de baixo custo. "Nós teremos um perímetro de segurança em volta da zona, mas famílias da classe trabalhadora vão poder comprar casas dentro dela", diz. Os postos de trabalho são concebidos "primariamente" para hondurenhos, garante o CEO.
O investimento inicial de US$ 15 milhões só será levantado após a aprovação da iniciativa pela Justiça. Segundo Strong, o empreendimento deve dar um retorno "razoável" em cerca de 10 anos. Ele cita zonas econômicas especiais na China, o Centro Financial Internacional de Dubai e a Nova Sondo, na Coreia do Sul, como influências do modelo a ser implementado em Honduras.
Michael Strong diz ainda que o grupo "não tem interesse algum" no Brasil, mas que sonda outros países onde o projeto possa ser colocado em prática.
É uma opção razoável dentro deste cenário e não foge de uma prática que se vê por todo mundo, inclusive no Brasil"
Alberto Pfeifer, diretor Executivo do
Conselho Empresarial da América Latina
Analistas divergem sobre projeto
Para o Diretor Executivo do Conselho Empresarial da América Latina (Ceal), Alberto Pfeifer, a opção pelas cidades privadas "tem a ver com a visão pragmática do papel do estado, da necessidade de ele oferecer bens públicos como educação, segurança, estrutura, saneamento, iluminação, etc., de modo a atender as expectativas da população e promover o crescimento do país".
Segundo Pfeifer, um estado com deficiências estruturais e restrições orçamentárias, comandado por um governo que tem sua legitimidade criticada pela comunidade internacional, tem mais dificuldades para dar conta dessas demandas da população. "É uma opção razoável dentro deste cenário e não foge de uma prática que se vê por todo mundo, inclusive no Brasil", avalia.

Para o especialista em gestão urbana e professor de História da FAU/USP, Renato Cymbalista, a iniciativa não é viável. "Se alguém comete um crime, quem vai julgar? E se o gestor dessa cidade comete algum tipo de crime ambiental?", questiona.
A cidade [privada] tem que dar lucro. Existem aspectos da nossa cidade que são caros e não dão lucro, como educação e saúde"
Renato Cymbalista,
professor da FAU/USP
Do ponto de vista administrativo, "a cidade [privada] tem que dar lucro. Existem aspectos da nossa cidade que são caros e não dão lucro, como educação e saúde", afirma Cymbalista. Segundo ele, a arrecadação dos impostos que o Estado faz paga serviços para pessoas que não podem pagar "via mecanismos de mercado". De acordo com Cymbalista, é possível "delegar para a iniciativa privada fazer parte de uma cidade".
O presidente do Congresso hondurenho, Juan Orlando Hernández, que apoia o modelo de cidades privadas, espera que o projeto crie 13 mil novos postos de trabalho em 2013. O grupo MGK espera levantar inicialmente US$ 15 milhões (R$ 30,1 milhões) para o empreendimento.

Para Cymbalista, no entanto, a conta não fecha. Para uma cidade, US$ 15 milhões "não é nada", diz o professor. Ele faz o cálculo dos ganhos que os 13 mil trabalhadores empenhados na construção da cidade podem ter com o investimento: "Se cada uma dessas pessoas ganhar US$ 1 mil por ano, já vai dar US$ 13 milhões. Para um salário miserável, já foi quase o dinheiro todo".
Há a figura dos especuladores que veem nesse projeto a oportunidade de obter lucro em países carentes"
Ricardo Trevisan, professor
da Universidade de Brasília
Ricardo Trevisan, professor adjunto no Departamento de Teoria e História da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, também pondera. "Há a figura dos especuladores que veem nesse projeto a oportunidade de obter lucro em países carentes", diz Trevisan, argumentando que é possível interpretar a iniciativa como uma continuidade no modo de exploração colonial.
"Por que tal ação não é feita em países ricos? Por que não parte dos países sedes das charter cities a intenção de criar tais cidades? Por que Honduras e não na Grécia, na Itália, na Espanha a opção de criar cidades e recuperar estes países da crise econômica e, simultaneamente, oferecer condições para abrigar migrantes vindos do norte da África?", pergunta.
Honduras tem o quarto pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da América Latina e Caribe
Baixos índices humanitários
O interesse do governo hondurenho no projeto das cidades privadas ocorre em meio índices negativos registrados por observadores internacionais. O país teve em 2010 a maior taxa de homicídios do mundo, com 82,1 mortes causadas intencionalmente para cada 100 mil habitantes, segundo estudo de 2011 do escritório de Crime e Drogas da Organização das Nações Unidas (ONU).
Honduras tem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,625, na 121ª posição entre os 187 países do ranking mundial de 2011 (o Brasil está na 84ª colocação, com 0,718). O IDH é usado como referência da qualidade de vida e desenvolvimento, sem se prender apenas em índices econômicos. O índice hondurenho, considerado médio pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), é o quarto mais baixo da América Latina e Caribe, atrás de Haiti, Guatemala e Nicarágua.
Governo questionado
O atual presidente, Porfirio Lobo, do Partido Nacional, assumiu o governo em 27 de janeiro de 2010, após eleições que, inicialmente, não foram reconhecidas por grande parte da comunidade internacional. O ex-presidente Manuel de Zelaya - na época, do Partido Liberal - foi deposto em um processo chamado de golpe por observadores internacionais. Ele passou diversos dias refugiado na embaixada do Brasil em Tegucigalpa.
Em 18 de maio, a Justiça Eleitoral convocou 5,2 milhões de eleitores para eleições primárias, em 18 de novembro, quando serão definidos os candidatos de nove partidos políticos, um ano antes das eleições presidenciais. A mulher de Zelaya, Xiomara Castro, deve se candidatar pelo partido de esquerda Liberdade e Refundação (Libre), criado pelo marido.